sábado, 27 de setembro de 2008

Uma História Real


"As paixões são como ventanias que inflam as velas dos navios fazendo-os navegar, outras vezes podem fazê-los naufragar, mas se não fossem elas, não haveriam viagens, nem aventuras, nem descobertas." - Voltaire


Julia estava atrasada, eu ansioso. Encontrávamos-nos todos os dias ali, naquele velho galpão, para namorar escondido. Ela tinha quinze anos, eu dezesseis. Seus pais não a permitiam namorar nessa idade, ainda mais com um garoto sem eira nem beira, como eu. Conhecemos-nos há pouco mais de seis meses, quando seus pais se mudaram para minha rua. Na primeira vez que a vi, senti meu coração bater acelerado, minhas pernas tremerem. Singela, doce e pura. Era a garota mais encantadora que eu já tinha visto. Seu aspecto meigo e ingênuo lhe atribuía uma aura divina.

Tão logo tratei de entrosar-me com os novos vizinhos e sempre que podia estava lá fazendo uma ou outra gentileza. Apresentei meus amigos para Julia e seus irmãos. Minha mãe também se deu muito bem com os pais de Julia, tanto que, em pouco tempo, estávamos alternando os almoços de domingo.

- Até que enfim. - Pensei que não viesse mais.
Na verdade, ela tinha se atrasado vinte minutos, isso era uma eternidade pra mim se o assunto fosse ela. Abracei-a com força e beijei seus lábios longamente, antes mesmo que ela se explicasse. Ficamos nos olhando. Beijei-a novamente. Queria aproveitar o pouco tempo que tínhamos, pois precisávamos voltar logo para casa. Seguimos conversando para o ponto de ônibus.

Deixei-a na porta de casa. Acenei para sua mãe, que nos observava da janela. Despedi-me com um sorriso e um piscar de olhos meio desajeitado. Entrei em casa, cumprimentei minha mãe ao passar pela cozinha e subi pro meu quarto. Sentia-me perturbado. Tomei um banho, joguei-me na cama e fiquei ali, olhando para o teto.
- Venha jantar querido. – Fiz almôndegas e couve flor gratinada. Seu prato favorito.
Sentei-me à mesa. Minha mãe serviu-me um prato de comida. Meu pai comia distraído e meu irmão ainda não tinha chegado da rua. O prato permaneceu intacto à minha frente.
- O que está havendo meu filho? – perguntou. - Você nem tocou a comida.
- Estou sem fome, mãe. Vou subir para o meu quarto.
- Nem pensar, rapazinho! Não antes de comer umas boas colheradas.
Remexi a comida. Levei duas colheres à boca. Não estava com fome. Minha mãe insistiu. Foi inútil. Deixei a mesa e voltei pro meu quarto. Tranquei a porta. Milhões de pensamentos atravessavam minha cabeça. Ouvia meus amigos da escola falando sobre suas mirabolantes experiências sexuais. Todos já haviam transado com uma ou mais garotas. Inventava histórias, sem pé nem cabeça, sobre transas que nunca tinham saído da minha imaginação. Sentia-me um tolo. Queria transar com Julia. Precisava falar sobre isso com ela, mas não sabia como fazê-lo. Estávamos juntos há alguns meses, o suficiente para que tivéssemos nossa primeira experiência. Uma vez, avancei o sinal num de nossos encontros diários. Ela recuou. Então tomei coragem e falei, sem rodeios, sobre o assunto. Julia não se sentia preparada. Compreendi. Eu a amava.

Com o passar dos dias, transar com Julia tornou-se uma obsessão. Queria tomá-la em meus braços, fazê-la delirar como diziam os meninos na escola. Masturbava-me constantemente pensando nesse dia. Precisava de uma história real para contar aos meus amigos.

Júlia e eu dificilmente ficávamos sozinhos. Sempre rodeados pela família ou amigos, ansiávamos pelo momento em que daríamos uma escapadela. Lembro-me de uma vez, quando estávamos todos numa festa da igreja, na rua de cima. Saímos de fininho, sem que nossos pais notassem, e fomos para sua casa. Cheio de entusiasmo a envolvi em meus braços e a beijei caricioso. Fomos para a cama. Eu a despi cuidadosamente sob uma colcha de retalhos. Trocamos afagos. Em seguida, afastou-se mais, olhando meu rosto. De repente, puxou a colcha e se enrolou.
- Não posso. Não estou preparada.
Seu jeitinho inocente era profundamente excitante. Da colcha enrolada ao seu corpo surdia a pele dourada dos ombros. Acariciei seus cabelos e seu rosto. Aproximei minha boca ao seu ouvido e murmurei:
- Quero ver teu corpo nu, correr minhas mãos sobre tua pele macia. Quero beijar teus seios, apertar tuas coxas...
Ela não cedeu. Pediu-me um tempo. Sem alternativa, consenti. Eu a amava e saberia esperar pelo momento em que ela se sentisse pronta. Juramos amor e prometemos conservar nossa virgindade. Teríamos a primeira noite de amor juntos. Voltamos para a festa, antes que dessem por nossa falta.

Minha obsessão fez com que brigássemos algumas vezes. Terminávamos num dia e voltávamos no outro. O vaivém durou mais de um ano, até que um dia Julia me procurou. Disse que não poderíamos seguir com nosso namoro. Surpreso, não compreendi. Ela se disse confusa, precisava de um tempo. Tentei conversar. Mas, embora meio embaraçada, parecia determinada. Chorei.

Dias a fio perguntei-me o porquê daquilo. Nós nos amávamos e tínhamos feito juras de amor. Sozinho no meu quarto, fantasiava nossa noite de amor. Conhecia cada curva do seu corpo. Sentia sua pele macia sobre a minha, seus lábios tocando os meus, sua língua quente e úmida a vasculhar-me a boca. Frustrado, adormecia. Amargas noites que não passaram de um insano delírio de sexo e paixão.

Resolvi procurá-la. Talvez tivesse sentido minha falta. Encontrei a casa fechada. O portão entreaberto permitiu minha entrada. A porta da cozinha estava apenas encostada. Empurrei-a, entrando devagar. Ninguém no quarto da mãe Julia. Continuei. Uma cortina amarela estampada com flores rosa e vermelha servia como porta no quarto de Julia. Passei minha cabeça pelo recorte da cortina a sua procura. Foi quando finalmente a encontrei. Desejei com todas as minhas forças nunca ter estado ali. Na cama um homem estava debruçado sobre Julia. Ela não me viu, estava com os olhos fechados. Estupefato, diante daquela visão ordinária, senti minha alma gritar. O homem me fitou com um olhar hostil. Sai correndo sem direção, chorando. Vagando pelas ruas, entristecido, fui tomado pelo ódio. Julia era agora desprezível. Como tinha sido hipócrita e dissimulada. Fingiu o tempo todo. Disse que me amava e agora estava se entregando a um homem que, pelo visto, tinha o dobro da sua idade. Era cruel demais para que eu pudesse aceitar.

Ao cair da noite, voltei para casa. Tranquei-me no meu quarto com a ilusão de que logo eu acordaria e tudo não teria passado de um pesadelo. Ouvi lá de cima, a campainha tocar. Era a mãe de Julia. Sempre visitava minha mãe. Era de praxe, embora naquele dia, já estivesse um pouco tarde. Nem pensei em descer para cumprimentá-la, pois não queria olhar para nada, nem ninguém. Permaneci no meu quarto. A visita foi rápida. Assim que ela saiu, minha mãe veio falar comigo. Sentou-se na minha cama e por alguns minutos apenas olhou-me com um olhar lânguido.
- Sei o quanto você e a Julia se gostam, filho – disse, com a voz rouca. É uma amizade muito bonita.
- Você está enganada mãe. A Julia não gosta de mim e eu tão pouco dela.
- Você precisa ser forte meu filho – Ela me abraçou e pois-se a chorar. - A Júlia se foi!
- A Júlia se mudou? Não estou entendendo mãe. Por que está chorando?
- Ela nos deixou querido – disse, tentando conter as lágrimas. - A Julia morreu, meu filho!
Um abismo se abriu sob meus pés. Aquilo já era demais.
- Isso não pode ser verdade mãe. Ainda há pouco eu a vi trans...
- Ela foi violentada hoje à tarde – disse, antes que eu pudesse concluir. - Foi cruelmente estuprada e assassinada, dentro de casa.
Disse isso e abraçou-me novamente. Depois pedi saísse. Precisava ficar sozinho. Era tudo inacreditável e a culpa era minha. Eu vi tudo. Poderia ter impedido, chamado a polícia, gritado por socorro. E, no entanto, não fiz nada para proteger a garota que eu amava. Preferi acusá-la, colocá-la no banco dos réus. Agora ela estava morta, e eu definharia o resto dos meus dias, corroído pelo remorso.

Na manhã seguinte, acordei bem cedo. Não queria ir ao enterro de Julia, mas alguma coisa me empurrava para lá. O dia estava cinzento e sem vida. Cheguei ao velório antes do horário marcado. Apenas a mãe de Julia estava lá. Cumprimentei-a com um beijo no rosto. Ela me abraçou com força e, em seguida, entregou-me um envelope:
- Acho que você deve ficar com isso – disse. - Encontrei nas coisas da Julia.
Era uma fotografia que havíamos tirado em frente ao parque da cidade. Era inverno, o dia estava lindo. Julia e eu passeávamos e comíamos pipoca. Uma bela lembrança. No verso algumas linhas diziam:

“A um único homem eu hei de me entregar loucamente
Com a pele viva, os lábios quentes e o corpo ardente.
Olhando-o nos olhos jurarei amor eternamente.”


Aproximei-me do caixão. As rosas brancas expressavam a pureza de uma menina doce e ingênua. Usava um vestido branco que eu nunca tinha visto. Ela era realmente linda, mesmo ali, sem vida. Reli o versinho dedicado a mim nas costas da fotografia. Olhei mais uma vez para o caixão. Seu corpo desvanecido estava exatamente como eu tinha visto no dia anterior. Então, naquele momento eu tive certeza. Ela já estava morta quando a vi na cama com aquele homem. Não havia nada que eu pudesse ter feito. Ele a matou antes de possuí-la. Suspirei num misto de dor e alívio. Senti meu corpo mais leve, sem o peso da culpa. Fui embora. Não queria permanecer diante daquele corpo frio. Julia não estava mais ali.

Caminhei até o parque. Tirei os sapatos e perambulei descalço pela grama. De repente, avistei Julia escondendo-se atrás de uma árvore. Corri para os seus braços. Ela ia de uma arvore à outra, como quem brinca de pique-esconde, chamando-me com a mão. Brincamos e corremos a tarde toda. E, todos os dias eu voltava para vê-la.

Assim passaram-se sessenta anos... e os meus amigos não tiveram uma história real.

quarta-feira, 17 de setembro de 2008

Olhos azuis


"O brilho dos teus olhos, de amor é fonte. Olhar que faz brilhar todo horizonte. Eternos, inspirados na pintura. Que Deus pintou, com gosto, nas alturas. Divinos, obra mor do Criador. Teus olhos, inspiração de um sonhador." - Manoel Virgílio


O doce de abóbora já estava quase no ponto e eu definitivamente não estava a fim de sair de casa naquele dia. Alfredo não parava de insistir. "O dia está lindo" dizia, eufórico, tentando me convencer. "Além do mais é sempre bom tomar um banho de mar, serve para tirar as energias negativas". Alfredo é assim, quando mete alguma coisa na cabeça ninguém mais tira. Disse também que um recente amigo seu iria conosco. Iríamos de carro. Na verdade não era bem um amigo, Alfredo havia conhecido o cara na internet, talvez já tivesse ido a sua casa, vez ou outra, à companhia de alguém, mas aquela tarde estava reservada para conhecê-lo melhor. Eu sabia de suas intenções para aquele dia, o que de fato, fez com que eu tivesse cada vez menos vontade de sair.

Ouvi a máquina de lavar concluindo seu trabalho. O doce ainda levaria alguns minutos para ficar pronto. Alfredo pois-se a me apressar dizendo que seu amigo já estava chegando. Disse que ele traria alguém legal para me apresentar. Não me animei. Logo o interfone tocou, eram os dois. Eu continuei na cozinha enquanto Alfredo foi até o portão do prédio. Depois de algum tempo Alfredo voltou com o mesmo discurso. Pediu insistentemente que eu fosse até a rua para conhecer seus amigos. Eu vestia apenas uma samba-canção, destas de seda, pensei em vestir um short e uma camiseta, mas como iria somente ao portão dei de ombros.

Já na calçada fui apresentado aos dois, Antonio e Xavier. Ambos de baixa estatura e com aproximadamente quarenta anos. Xavier tinha um olhar perdido. Mal notei a cor, tamanho, ou expressão de seus olhos, já Antonio era dono de fulminantes olhos azuis que eu tinha a impressão de estarem me atravessando a alma. Antonio e eu nos olhamos por segundos até que Alfredo quebrasse o silêncio. “Ele não que ir conosco porque está fazendo doce de abóbora”, disse com um tom debochado e um risinho chocho forçando o canto dos lábios. Sem tirar os olhos de mim Antonio insistiu para que eu fosse. “Ok! Vocês venceram. Aguardem um instante que eu já volto”. Atravessando a rua em direção ao prédio fiquei perguntando-me porque havia dito aquilo, afinal eu não queria ir. Olhei para trás e os olhos azuis ainda me fitavam.

Entrei apressado, desliguei o fogo sem verificar se o doce já estava no ponto. Vesti uma sunga qualquer e bati a porta às minhas costas me esquecendo de estender a roupa para secar. Sorri para Antonio pensando no que me fizera mudar de idéia tão de repente. Hesitei em pensar bobagens, até porque, para mim Antonio já estava “prometido” a Alfredo e eu deveria me aproximar de Xavier, que não havia me chamado à atenção. Alfredo e eu nos sentamos no banco de trás. Pelo retrovisor eu podia ver nitidamente o modo como Antonio encarava-me, tentei não corresponder, mas foi inevitável.

Só quando chegamos à praia notei que o dia estava realmente lindo como Alfredo havia dito. Nos posicionamos na areia próximo a um quiosque que o Antonio indicou e ficamos tomando sol. Alfredo puxou conversa tentando criar um clima amistoso entre todos. Falávamos sobre diversos assuntos sem muita objetividade. Ambos eram muito simpáticos. Xavier era mais falador, contudo não conseguia prender minha atenção, talvez também não fosse esta sua intenção. Conversamos sobre minha recente mudança para o Rio, sobre as diferenças de culturas e ritmos de vida de um lugar para outro. “Em São Paulo as pessoas tem um ritmo mais agitado, trabalham mais”, dizia eu tentando me gabar sem saber exatamente o que queria dizer. A conversa prosseguiu naturalmente durante toda a tarde e eu já não me incomodava mais com a insistência dos olhos azuis que, vez por outra, me fitavam como a procura de uma resposta.

Por volta das dezessete horas Antonio sugeriu que fossemos embora. Alfredo concordou imediatamente, eu disse que tudo bem e Xavier também não se opôs. Antonio se dirigiu ao quiosque para acertar a conta, quando voltou já estávamos nos preparando para sair. Alfredo foi à frente, seguido por Xavier, enquanto eu sacudia a canga para tirar a areia e Antonio fechava a cadeira de praia que ele mesmo levou. O pouquíssimo tempo que ficamos pra trás foi suficiente para Antonio, olhando fixamente nos meus olhos, pronunciar as seguintes palavras: “você é uma gracinha”. Eu não sabia o que dizer e agradeci o elogio apenas com um sorriso tímido. Seguimos. Em direção ao carro, estacionado a certa altura da Avenida Atlântica, Antonio nos disse que alguns amigos seus e do Xavier os esperavam num bar que ficava no caminho de volta. Gentilmente convidou-nos para acompanhá-los. Alfredo relutou, mas eu estava interessado no que poderia acontecer. Desta vez foi eu que insisti para que ele fosse. Dentro do carro a troca de olhares pelo retrovisor se repetiu de forma recíproca e com mais intensidade.

O Bar era pequeno, mas bem movimentado e a decoração lembrava um antigo cabaré. Ficava a poucos quilômetros de casa. Eua já tinha passado em frente, mas sem nunca ter entrado. Alguns rostos familiares circulavam por ali. Na mesa um irmão de Antonio e outros amigos nos receberam. Fomos apresentados, trocamos beijos, abraços e apertos de mãos. Todos se acomodaram. Para minha surpresa Alfredo deixou uma cadeira vazia ao lado de Antonio e fez um sinal para que eu me sentasse nela. Xavier encheu nossos copos com cerveja e Antonio propôs um brinde. “À noite, que está linda!” disse, olhando para mim. Todos na mesa eram muito agradáveis. Alfredo falava com o irmão de Antonio assuntos que chegavam aos meus ouvidos, mas não conseguiam desviar meus pensamentos. Meus olhos estavam fixos nos olhos de Antonio. Eu já podia sentir suas pernas roçarem as minhas sob a mesa. Meu desejo empurrava-me para aquela tentação, ao passo que, minha consciência relutava colocando Alfredo entre nós. Na praia os dois haviam conversado pouco. Antonio não deu muita atenção a Alfredo e ele também pareceu não se importar muito com isso. Perguntou-me o que eu havia achado de Antonio, eu disse apenas que era simpático.

Horas depois, Alfredo decidiu ir embora. Pedi para que ficasse, mas não adiantou, desta vez não insisti. Pensei em ir também, mas não consegui, minhas mãos já tocavam as mãos de Antonio sobre nossas pernas. Despedi-me de Alfredo com um aperto de mãos e um tapinha nas costas e ele sumiu dobrando a esquina. Meu olhar se voltou para a mesa a procura dos olhos azuis, mas eles não estavam mais lá. Alguém na mesa informou-me que ele tinha ido ao banheiro. Pensei em ir até lá mas logo desisti, não achei conveniente. Acendi um cigarro e resolvi esperar por ele ali mesmo enquanto participava de um interminável monólogo produzido por uma de suas amigas.

Quando ele voltou sentou-se à mesa, ascendeu um cigarro e enquanto liberava a fumaça de seus pulmões perguntou-me com um olhar malicioso se eu gostaria de ir embora. Desviando-me do monólogo respondi que sim. Rapidamente nos despedimos do pessoal e em poucos minutos já estávamos no carro, desta vez só ele e eu. As portas bateram juntas, nossos olhos se encontraram segundos antes de nossos lábios. Não sei explicar o que senti durante aquele beijo, nem quanto tempo ele durou. Sei que foi molhado e que por algum motivo eu não conseguiria esquecê-lo. Sem dizer nada, mas já sabendo o que estava por vir, seguimos para o seu apartamento.

Morávamos na mesma rua, aproximadamente uns dez prédios separavam os nossos. Ele parou o carro na calçada em frente ao seu apartamento e verificou algo antes de subirmos. O apartamento era muito acolhedor, bem agradável, precisava só de alguns toques na decoração e, de repente, uma nova mão de tinta. Conduziu-me direto para o seu quarto sem muitas palavras. Estava aparentemente ansioso. Eu também estava, porém um pouco mais calmo. Já deitados e completamente despidos eu podia sentir sua língua percorrendo meu pescoço como se procurasse algo. Nossas mãos deslizavam mutuamente sobre nossos corpos como as de um cego a contemplar uma obra de arte. Respirávamos ofegantes e nos apertávamos um contra o outro como se quiséssemos, numa espécie de mutação, sermos um só. Nossas partes íntimas ainda preservavam a areia da praia. Não demoramos muito a soltar um uivo e cair na cama entregues a exaustão, parecíamos ter entrado num estado de transe. Minutos depois, quando retomei a consciência, fui surpreendido por serenos olhos azuis, cheios de ternura a me observarem. A inquietação havia passado e tudo que restara era paz e tranqüilidade. Abri um pequeno sorriso sem mostrar os dentes e perguntei-me em silencio: “como seria não ter Antonio por perto?”


Felizmente eu nunca soube a resposta. Desde então sou surpreendido todas as manhãs pelos mesmos olhos azuis que me atravessaram a alma naquele domingo de sol, quando minha única certeza era um saboroso doce de abóbora.
"Há um tempo em que é preciso abandonar as roupas usadas, que já tem a forma do nosso corpo, e esquecer os nossos caminhos, que nos levam sempre aos mesmos lugares. É o tempo da travessia. E, se não ousarmos fazê-la, teremos ficado, para sempre, à margem de nós mesmos." - Fernando Pessoa