quarta-feira, 1 de junho de 2011

Baú

"Porque onde estiver o vosso tesouro aí estará também o vosso coração." Mt. 6.21 - Bíblia Sagrada

Hoje pela manhã acordei com o inconfundível barulho das rodinhas de uma mala deslizando sobre o taco de madeira. Sonolento pensei – estaria ele partindo, para sempre? - Levantei num salto e enquanto caminhava até a sala as idéias foram se reorganizando e então me lembrei: ele realmente estava partindo, mas por pouco tempo. O que eu não me dei conta é que a lacuna que se abria entre nós provavelmente consumiria bastante tempo até tapar-se. Um olhar triste de encontro ao outro. Rostos sem expressão numa sala que parecia tão vazia quanto nós. Ele estaria de volta em três dias e tudo ficaria bem outra vez. Num relacionamento você aprende a arte de chatear-se e “deschatear-se”. Como diz uma amiga, ficar triste, puto, zangado sempre geram dois trabalhos: o de ficar e o de “desficar” seja a quem for. Verdade, mas nem sempre tão simples assim. Feridas que não fecham. Feridas que muitas vezes nem abrem. Drama. Ok, assumo minha parcela de culpa nessa cena pungente, mas quem não tem? Estou cansado: corpo, mente... E isso me deixa mal humorado, às vezes, acho. O fato é que cá estou eu e lá está ele, unidos talvez por essas idéias desordenadas. Mas há mais que isso, há muito mais. Só não me lembro exatamente onde está. Como um baú que guarda um tesouro e que está perdido. É acho que colocamos todo o resto num baú pra ficar protegido o que é nosso. Qualquer hora eu tropeço neste tesouro...!

Já parou pra pensar?

No reveillon eu parei pra pensar. Parei e pensei em todas as pessoas que já passaram pela minha vida. Tentei. Quando falo todas quero dizer TODAS! São vinte quatro anos. É muuuita gente! Você já tentou? Garanto que se separar alguns minutos para isso vivenciará uma experiência supreendentemente incrível. Serão minutos de pura emoção. Tente pensar em tudo quanto é rosto, tudo quanto é nome. Comece lá na sua infâcia, na escola... Tenho certeza que por vezes vais rir, se arrepiar, se emocionar. Deixe sua memória te conduzir. Pensarás em pessoas que... aff. nada a ver! rs.. No entanto, outras mexerão bastante com você. Algumas dessas pessoas passaram rapidinho pela nossa história, mas ainda assim, foram capazes de fazer toda diferença. Já outras, levaram mais tempo do que deveriam e... deixa pra lá. Seja como for, todas elas tiveram sua contribuição para que chegássemos até aqui da forma que chegamos.

Pensando nisso pensei em mim. Em toda jornada. Todas as escolhas. Caraca.. como eu fiz M nessa vida! Algumas vezes temos que pensar com o coração, outras com a razão. O problema é que quando você opta por um deveria ter optado pelo outro e sempre dá M. Mas, às vezes, também fazemos a melhor escolha sem nos dar conta disso. Colei na escola, apertei a campanhia dos outros e corri, joguei bolinha-de-gude, soltei pipa, ajudei minha mãe a vender cachorro-quente na frente de casa... Fiz amigos! Conheci pessoas realmente incríveis. Pessoas que eu recordava a pouco e que me fizeram extremecer. Experimentei o lícito e o ilícito (...).

Uma vida curta. Uma história longa. Parei pra pensar no que poderia ter acontecido se eu tivesse deixado de conhecer uma destas pessoas sequer... se tivesse deixado de fazer uma M... Qualquer passo diferente poderia ter me levado para outro lugar, diferente do que estou agora. Qualquer ato, qualquer palavra, encontros, desencontros... Um simples gesto e talvez minha história hoje fosse completamente diferente.

Obrigado meu Deus por cada passo, por cada escolha, por cada M, por cada pessoa, mesmo as mais difíceis. Hoje estou exatamente onde queria estar. To feliz pra caramba! Obrigado a todos que me estenderam a mão e aos que não o fizeram também, pois, de um jeito ou de outro, aprendi. Obrigado amigos. Obrigado família.

sábado, 2 de maio de 2009

Transporte Urbano


Saio do trabalho as 22:40, desço as escadas rolantes, atravesso a porta de saída do Shopping Leblon, ascendo um cigarro e rumo para a Avenida Afrânio de Melo Franco, onde habitualmente pego o ônibus, que me deixa perto de casa.
Após dez ou quinze minutos de espera, o que eu considero uma infinidade de tempo, eis que surge o vermelhinho 433. Com o braço ereto e apenas o polegar esticado, apontando para o outro lado da rua, faço sinal para o motorista. Ele sabidamente compreende meu sinal e para o ônibus, abrindo as portas para que eu entre. Dentro do veículo, após transpor a roleta, escolho um banco para me sentar. São inúmeras as opções, já que não há ninguém no ônibus além do motorista, o cobrador e um ou outro coitado que também utiliza o transporte público a essa hora. Depois de sentar-me abro meu livro e entrego-me a leitura. Há uma grande vantagem em se ir para o trabalho de ônibus, coisa que o carro não pode proporcionar. Depois de acomodado você pode utilizar o tempo da viagem, que no meu caso é de trinta minutos, podendo chegar à uma hora, dependendo do transito e da boa vontade do motorista, para ler ou tirar um cochilo. Isso quando o motorista não resolve tirar o pai da forca ameaçando tombar o ônibus em curvas sinuosas que quase nos arremessam para fora do veículo. E, quando o ônibus finalmente chega onde você deseja, ao contrário do carro, você apenas desce e dane-se o ônibus, não é preciso enfurecer-se enquanto procura ansiosamente por uma bendita vaga. Sim, porque se eu ousar guardar o carro no estacionamento do shopping terei de vendê-lo na saída para pagar a diária.

Foco.
Enquanto lia, absorto, o livro “Coração de Tulipa” do escritor André Neuding Filho, (na ocasião em que escrevo já concluí a leitura e recomendo) um indivíduo passou por mim, sentando-se no fundo do ônibus. Minutos depois o desgraçado volta e com a mão por baixo da blusa, apontando-me algo que segundo ele seria um revolver. Pediu grosseiramente que eu me levantasse e o acompanhasse até os fundos. Acho que se os assaltantes fossem um pouco mais educados aliviariam um pouco a tensão do assalto. Olhei desesperadamente para frente à procura de socorro. O cobrador, virado para frente do ônibus, distraía-se com fones no ouvido, um dos únicos dois passageiros à minha frente dormia e a outra lia algo que deveria ser uma revista ou um jornal. Pensei em quantas pessoas poderiam estar sendo assaltadas naquele momento enquanto outras ouviam seus rádios de pilha ou liam seus livros, alheios à realidade como eu fazia há pouco. Com medo, fiz o que o sujeito me pedia. Sozinhos lá no fundo, o infeliz forçava o cano contra minha barriga. Exigiu minha carteira mesmo depois de eu ter dito repetidas vezes que não havia dinheiro e, de fato, não havia mesmo. Quando abriu encontrou dois dólares e dois reais. Acho que ele se compadeceu de mim, pois atirou a carteira sobre meu colo sem retirar os trocados. Notando a saliência no meu bolso esquerdo exigiu o que adivinhou ser um celular. Depois de apossar-se do aparelho ordenou que eu fosse para frente. Desolado obedeci tremendo feito uma vara verde.
Passados alguns minutos o sujeito desceu do ônibus quando uma multidão de jovens entrou com destino a Lapa. Finalmente senti-me aliviado, embora, frustrado. Após vencer um interminável congestionamento ao passar pela movimentada Lapa desci do ônibus e caminhei até minha casa, onde tive a surpresa de encontrar meu namorado na porta com o celular (dele) na mão, dizendo que alguém ligava do meu número. Não pude deixar de notar o olhar despontado que ele me lançou crédulo de que eu havia feito alguma "M". Do outro lado da linha um sujeito com voz branda dizia que havia encontrado meu celular e que se eu quisesse de volta poderia buscá-lo na Tijuca. Que tipo de pessoa acha que eu me despencaria de Santa Teresa àquela hora e iria até a Tijuca encontrar um desconhecido para obter de volta um celular que me fora roubado minutos antes??? Affff....Marquei um encontro com o sujeitinho em Copacabana no dia seguinte. Você foi? Nem eu! Liguei na operadora e segui os procedimentos de praxe para quem tem o aparelho perdido ou roubado, embora, no fundo, eu acredite que isso seja apenas para descargo de consciência. A atendente, depois de solicitar um número que se encontra na NF do aparelho, orientou-me no sentido de que o aparelho seria bloqueado não podendo ser utilizado de forma alguma, nem com um chip de outra operadora. Duvido. Ainda que isso seja verdade, o aparelho ainda servirá como despertador, agenda telefônica, agenda de compromissos, conversor de moedas, calculadora, MP3, Câmera fotográfica e outras funções que talvez eu ignore. É... Mais uma vez é a tecnologia a serviço do povo!!!

quinta-feira, 30 de abril de 2009

Amarga Coincidência

"Somos homens pra saber o que é melhor pra nós. O desejo a nos punir, só porque somos iguais. A Idade Média é aqui. Mesmo que me arranquem o sexo, minha honra, meu prazer: Te amar eu ousaria. E você, o que fará se esse orgulho nos perder?..." - Jorge Vercillo - Avesso


As lágrimas despencavam-lhe violentamente dos olhos. Tomou o filho nos braços e partiu depressa rumo ao hospital. Enquanto aguardava na sala de espera, dois policiais aproximaram-se para lhe interrogar:
- Conte-nos como foi que encontrou seu filho.
- Ele estava caído, coberto de sangue, com marcas por todo o corpo – disse atordoado.
- Estava acordado?
O pai hesitou por um instante. Enfim concluiu:
- Não sei. Fiquei desesperado quando o vi ali, caído – disse com voz tremula, pondo-se a chorar compulsivamente.
Os policiais consideraram oportuno interromper o interrogatório enquanto aguardavam o laudo médico.
...

Era a primeira manhã de sol depois de um longo inverno frio e chuvoso. Os pássaros catarolavam, festejando a entrada da nova estação. Lucas acordou antes de soar o despertador previsto para as oito horas. Quase não pregara os olhos àquela noite de tanta ansiedade. Levantou-se depressa. Ia e vinha de um lado a outro sem saber o que fazer primeiro. Diante do espelho, após pentear os cachos dourados, tentava inutilmente esconder as olheiras que a noite mal dormida lhe trouxera esticando a pele sob os delicados olhos azuis. Finalmente vestiu-se depois de provar todas as roupas do armário. Deslizou pelo corrimão, parando com um salto no centro da sala de estar. Cumprimentou a mãe ao passar pela cozinha e saiu sem desjejuar. Lucas estava radiante. Passaria o dia todo com seu melhor amigo Alex que retornara de viagem naquela semana. O amigo se ausentou porque seus pais decidiram que deveria estudar alemão. Passado um ano na Alemanha o garoto que já falava inglês e espanhol voltou com o novo idioma na ponta da língua. Alex tinha facilidade com os idiomas, aprendia com rapidez e falava como um estrangeiro nato. Era dois anos mais velho que Lucas, corpulento e safo. Sua barba sempre por fazer denotava-lhe uma aparência mais velha, ao passo que, Lucas com dezessete anos ainda parecia uma criança. Apesar do corpo esguio e das curvas bem definidas seu rosto meigo era de bebe.

Encontraram-se numa estrada de terra que levava a um pequeno povoado vizinho. Caminharam cerca de duas horas falando sobre a viagem de Alex e as novidades em Miguel Pereira cidade natal de ambos, onde viviam. Pegaram uma trilha e em menos de uma hora chegaram a um riacho formado por uma pequena queda d’água que jorrava a pouco mais de um metro de altura. Despiram-se, contemplando a beleza e num salto mergulharam. Do alto de uma árvore alguém os observava, nadando como vieram ao mundo. Alex nadava como um peixe. Lucas tentava imitá-lo sem muito sucesso.
- Estamos nadando há bastante tempo. Estou com fome.
- Vamos fazer uma pausa para comer algo – sugeriu Alex.
Saíram da água e caminharam até seus pertences. Alex retirou uma tolha da mochila e a estendeu no chão. Pegou dois sanduíches de queijo, algumas frutas e um refrigerante e dividiu com o Amigo.
- Você ainda não me disse nada em alemão.
- Qualquer dia eu digo alguma coisa.
- Diga-me agora, qualquer coisa – insistiu Lucas.
- Ich liebe dich – disse Alex, pela primeira vez demonstrando timidez.
- O que isso quer dizer?
- Descubra! – disse Alex, terminando de comer e voltando ao lago para fugir do assunto que lhe enrubescera a face.
Nadaram por mais algum tempo até que a noite começou a cair. Antes de escurecer por completo vestiram suas roupas e voltaram para a cidade.
...

No hospital nenhuma novidade. O homem, indócil, aguardava notícias do filho que permanecia na sala de emergência com olhos arregalados, cheios de ódio e medo, da mesma forma que chegou ao hospital, sem dizer uma única palavra.
...

No caminho de volta Alex desviou-se da direção, entrando numa pequena rua deserta que desembocava num velho galpão. Lucas seguiu-o distraído. Alex entrou nas ruínas, puxando Lucas pelo braço que não teve tempo de reagir.
- O que fazemos aqui? – indagou surpreso.
Alex empurrou o amigo contra a parede e o beijou num impulso. Lucas nunca havia sido beijado por um homem. Quis empurrar o amigo e acabar com aquilo, mas sentiu uma estranha vontade de prosseguir. Perplexo retribuiu o beijo desconcertado.

Ao sair do trabalho Otávio entrou no carro e seguiu direto para casa. Apressado resolveu cortar caminho por uma pequena rua deserta onde teve a infelicidade de ter um de seus pneus furado. Sem ferramentas, encostou o carro em frente a um galpão abandonado e entrou a procura de alguém que pudesse lhe emprestar um macaco e uma chave de roda. Da porta pode observar duas pessoas namorando no galpão. Aproximou-se cauteloso e viu dois rapazes que se beijavam distraídos. Escondeu-se atrás de alguns pneus, espreitando os dois.

Lucas afastou o amigo segurando-lhe pelos braços.
- O que está fazendo? - perguntou confuso.
- Desculpe-me. Não sei o que deu em mim – Alex tentava explicar-se, envergonhado.
Um silêncio absoluto tomou conta do galpão. Num ímpeto, ainda com as mãos nos braços de Alex, Lucas o puxou de volta e o beijou voraz. Um sentimento inexplicável tomava conta dos dois que se deliciavam, um nos braços do outro. Escondido Otávio estranhamente excitava-se ao mesmo tempo em que sentia ódio e nojo dos garotos. Otávio sempre foi um homem muito preconceituoso e machista. Prestava uma educação severa ao único filho que sua esposa lhe dera. Sua vontade era de espancar os garotos, mas permaneceu imóvel. Alex virou o amigo abraçando-o por trás e beijando-lhe a nuca e as orelhas enquanto esfregava o membro rígido em suas nádegas.
...

Depois de intermináveis horas de espera o médico saiu da sala e foi ao encontro do pai que aguardava, aflito, notícias de Lucas.
- Seu filho está bem – anunciou o médico diligente – ele sofreu graves lesões, mas irá se recuperar.
- Quanto tempo ele ainda terá que ficar aqui doutor?
- Ainda não sabemos ao certo. O suficiente para uma boa recuperação. É só o que posso dizer por enquanto – disse o médico, fazendo sinal para que os policiais o acompanhassem.
Sozinho com os policiais declarou:
- São evidentes os sinais de estupro – fez uma pausa enquanto os policiais apenas o observavam. - Há marcas de pancada e ferimentos por todo o corpo.
...

No galpão os meninos finalmente se deram conta do tempo que haviam passado ali.
- Está ficando tarde – disse Lucas virando-se de repente e interrompendo o amigo que estava preste a descer-lhe as calças – receio que meus pais estejam preocupados.
- Sim, claro. Vamos embora!
Despediram-se com um beijo demorado e Alex deixou o galpão contrariado com a decisão do amigo de permacer alí, sozinho.
- Preciso ficar um pouco e pensar no que aconteceu – determinou Lucas. - Além do mais estamos perto de casa, daqui sigo sozinho, não se preocupe.
- Certo, mas não demore, este lugar não é confiável - disse Alex ao se retirar.
Otávio encolheu-se mais fazendo com que Alex saísse sem notá-lo. Depois caminhou silenciosamente em direção a Lucas e com um soco jogou-lhe ao chão, agaixando-se sobre ele.
- É disso que você gosta seu pederasta nojento? – disse exacerbado, arriando as calças do rapaz.
Lucas gritou por socorro algumas vezes, mas logo levou uma pancada na cabeça e perdeu as forças. Com as calças também arriadas Otávio deitou sobre ele, penetrando-o violentamente repetidas vezes à medida que o espancava com uma das mãos e com a outra agarrada às suas madeixas esfregava sua cara no chão. A única luz no galpão vinha de uma falha no telhado provocada por uma telha quebrada. Mesmo com pouca claridade Lucas pode facilmente reconhecer seu algoz.
...

O médico tentava extrair alguma informação do garoto que permanecia calado e atônito. Em outra sala os policiais interrogavam o pai:
- Conte-nos com detalhes senhor, como foi que tudo se passou?
- Eu estava saindo do trabalho – disse temeroso. – E, resolvi pegar atalho por uma rua deserta, onde tive a infelicidade de ter um dos pneus furado por um prego. Então parei próximo a um galpão e resolvi entrar para ver se conseguia ferramentas emprestadas – fez uma pausa e continuou – quando entrei encontrei meu filho neste estado.
- Acho que isso é suficiente por enquanto senhor. Tente se acalmar. Tudo acabará bem. Precisamos do seu nome completo e o número de um documento para o boletim de ocorrência – continuou o policial.
- Otávio Martins Leite – disse o homem, vasculhando a carteira à procura de um documento.
- Perfeito senhor, isso é tudo. Acho que já pode ver o seu filho – concluiu o policial dando a conversa por encerrada.
Otávio entrou na sala onde Lucas se encontrava deitado à companhia do médico. O garoto dirigiu um olhar apavorado ao pai que se pôs a chorar imediatamente.
- Vou deixá-los a sós para que possam conversar – disse o médico, deixando o quarto para desespero do rapaz.
- Meu Deus, o que eu fiz? – questionava-se o pai incrédulo, tentando conter as lágrimas. - Perdoe-me meu filho – emendou.
O garoto permanecia calado, agora chorando baixinho. Seus olhos injetados pelo sofrimento e pelo medo permaneciam estáticos.
O pai teve que deixar o quarto a contragosto. Enfermeiros entravam com um senhor de idade avançada que dividiria o quarto com o garoto. Passado algum tempo percebendo o sotaque diferente com que o velho se dirigia aos enfermeiros o garoto quebrou o silencio:
- O senhor fala engraçado – disse, um tanto rouco, depois de tantas horas calado.
- Ainda não aprendi direito o idioma de vocês – retrucou o velho.
- De onde o senhor é?
- Sou da Alemanha, mas venho ao Brasil ocasionalmete visitar um de meus filhos.
Lucas sentiu segurança nas palavras do velho, dócil emendou um falatório sem fim. Os dois conversaram por horas até que foram interrompidos pelo médico surpreso ao ver o garoto falando. O pai, na sala de espera, aguardava ser chamado novamente.

Mais tarde o médico decidiu por chamar Alex já que Lucas não falava em outra coisa desde que o doutor o surpreendera tagarelando. O velho alemão apenas observava. Em poucas horas Alex adentrou ao hospital esbaforido. Conduziaram-no até o quarto de Lucas, passando pelo pai que aguardava aflito. Otávio não reconheceu o rapaz que passou despercebido por ele. Ao entrar no quarto avistou Lucas que o recebeu jubiloso. Alex não conseguia acreditar no que via. O menino envergonhando, aos poucos foi contando tudo ao amigo furtando alguns detalhes. Pasmo Alex encorajava-o a dizer tudo ao médico. Lucas olhou para o lado e ganhou o olhar de aprovação do velho que ouvira tudo em silêncio. Depois de ouvir tudo o médico se dirigiu aos policiais que, já desconfiados, foram até a sala de espera e deram voz de prisão a Otávio antes mesmo do resultado dos exames feito com o sêmen encontrado no garoto. No quarto Lucas não conseguia controlar o choro. Delicadamente Alex sentou-se na cama, colocando a cabeça do amigo em seu colo. Tomado pelo cansaço Lucas reuniu forças, fitou o parceiro e disse:

- Ich liebe dich auch!

Olhou para o velho, deu uma piscadela e adormeceu nos braços de seu amado.

terça-feira, 28 de outubro de 2008

Onde você mora?


"E moro num cenário, do lado imaginário. Eu entro e saio sempre quando tô afim. Coisas que eu sei..." - Danni Carlos - Coisas Que Eu Sei


Há poucos dias fui surpreendido por uma pergunta que me deixou intrigado. Uma amiga perguntou-me onde eu morava. Parece bobo isso né? A resposta veio instintivamente à minha cabeça: Rua tal, nº tal... mas antes de responder parei para refletir um pouco. Estamos habituados a ouvir esta pergunta. Somos massacrados por ela durante toda a vida. Sempre que conhecemos novas pessoas, trocamos de empregos, cursos.. etc. Esta pergunta sempre está lá. Nosso endereço faz parte de nós, mas que endereço? Na última vez em que fui surpreendido por essa pergunta, eu a senti mais profunda que todas as vezes anteriores. O mais estranho nisso tudo, motivo que me fez refletir, é que quem me perguntou já sabia meu endereço. Portanto, óbviamente, não era sobre isso que estava falando. Caramba, onde eu moro? Onde você mora? Perguntinha ordinária de caráter insignificante. Por que tenho que morar em algum lugar? Por que tenho sempre que estar preso a um endereço? Esses pensamentos atravessaram minha cabeça mutuamente. Depois de pensar um pouco, consegui responder:

- Eu moro em mim - Não sabia exatamente o que estava dizendo, mas continuei. - Eu moro mim. Saio daqui todos os dias, seja para o trabalho, para a escola, ou para o lazer, mas quando tudo passa eu volto para cá. Parece pequeno falar assim, mas é a unica morada que eu realmente tenho e é pra cá que eu sempre volto. Parace pequeno, mas está cheio de gente aqui. Ah muito tempo perdi a chave deste lugar e desde então vejo as pessoas entrando e saindo desordenadamente, perdi o controle. Pra ser sincero eu nem faria questão que algumas destas pessoas estivessem aqui, mas não tenho mais como tirá-las, elas já se apropriaram de mim. Então permito que fiquem, desde que sirvam, ao menos, para o meu crescimento. Eu moro em mim e nunca estou sozinho. Sei que algumas das milhares de pessoas que moram comigo estão só curtindo uma temporada e que poderão, de repente, partir. Nada farei para impedir, assim como eu, todos tem seu próprio endereço e, querendo ou não, todos acabam voltando para lá. Eu mesmo já morei em várias pessoas, me aventurei diversas vezes. Não que eu tenha deixado de me aventurar, mas agora sempre volto para "casa" ao entardecer. Eu moro em mim e se você quiser morar, não precisa bater, basta entrar. E, quando quiser sair, é só sair.... Só peço que não bata a porta.

Acho que consegui dizer tudo que queria e acho que ela entendeu também, sugeriu até que fizéssemos uma viagem do país de dentro para o país de fora. Ótimo eu adoro viagens, conhecer pessoas, envolver-me com elas. Irei ao país de fora quantas vezes forem necessárias, mas sempre tornarei ao país de dentro.

sábado, 27 de setembro de 2008

Uma História Real


"As paixões são como ventanias que inflam as velas dos navios fazendo-os navegar, outras vezes podem fazê-los naufragar, mas se não fossem elas, não haveriam viagens, nem aventuras, nem descobertas." - Voltaire


Julia estava atrasada, eu ansioso. Encontrávamos-nos todos os dias ali, naquele velho galpão, para namorar escondido. Ela tinha quinze anos, eu dezesseis. Seus pais não a permitiam namorar nessa idade, ainda mais com um garoto sem eira nem beira, como eu. Conhecemos-nos há pouco mais de seis meses, quando seus pais se mudaram para minha rua. Na primeira vez que a vi, senti meu coração bater acelerado, minhas pernas tremerem. Singela, doce e pura. Era a garota mais encantadora que eu já tinha visto. Seu aspecto meigo e ingênuo lhe atribuía uma aura divina.

Tão logo tratei de entrosar-me com os novos vizinhos e sempre que podia estava lá fazendo uma ou outra gentileza. Apresentei meus amigos para Julia e seus irmãos. Minha mãe também se deu muito bem com os pais de Julia, tanto que, em pouco tempo, estávamos alternando os almoços de domingo.

- Até que enfim. - Pensei que não viesse mais.
Na verdade, ela tinha se atrasado vinte minutos, isso era uma eternidade pra mim se o assunto fosse ela. Abracei-a com força e beijei seus lábios longamente, antes mesmo que ela se explicasse. Ficamos nos olhando. Beijei-a novamente. Queria aproveitar o pouco tempo que tínhamos, pois precisávamos voltar logo para casa. Seguimos conversando para o ponto de ônibus.

Deixei-a na porta de casa. Acenei para sua mãe, que nos observava da janela. Despedi-me com um sorriso e um piscar de olhos meio desajeitado. Entrei em casa, cumprimentei minha mãe ao passar pela cozinha e subi pro meu quarto. Sentia-me perturbado. Tomei um banho, joguei-me na cama e fiquei ali, olhando para o teto.
- Venha jantar querido. – Fiz almôndegas e couve flor gratinada. Seu prato favorito.
Sentei-me à mesa. Minha mãe serviu-me um prato de comida. Meu pai comia distraído e meu irmão ainda não tinha chegado da rua. O prato permaneceu intacto à minha frente.
- O que está havendo meu filho? – perguntou. - Você nem tocou a comida.
- Estou sem fome, mãe. Vou subir para o meu quarto.
- Nem pensar, rapazinho! Não antes de comer umas boas colheradas.
Remexi a comida. Levei duas colheres à boca. Não estava com fome. Minha mãe insistiu. Foi inútil. Deixei a mesa e voltei pro meu quarto. Tranquei a porta. Milhões de pensamentos atravessavam minha cabeça. Ouvia meus amigos da escola falando sobre suas mirabolantes experiências sexuais. Todos já haviam transado com uma ou mais garotas. Inventava histórias, sem pé nem cabeça, sobre transas que nunca tinham saído da minha imaginação. Sentia-me um tolo. Queria transar com Julia. Precisava falar sobre isso com ela, mas não sabia como fazê-lo. Estávamos juntos há alguns meses, o suficiente para que tivéssemos nossa primeira experiência. Uma vez, avancei o sinal num de nossos encontros diários. Ela recuou. Então tomei coragem e falei, sem rodeios, sobre o assunto. Julia não se sentia preparada. Compreendi. Eu a amava.

Com o passar dos dias, transar com Julia tornou-se uma obsessão. Queria tomá-la em meus braços, fazê-la delirar como diziam os meninos na escola. Masturbava-me constantemente pensando nesse dia. Precisava de uma história real para contar aos meus amigos.

Júlia e eu dificilmente ficávamos sozinhos. Sempre rodeados pela família ou amigos, ansiávamos pelo momento em que daríamos uma escapadela. Lembro-me de uma vez, quando estávamos todos numa festa da igreja, na rua de cima. Saímos de fininho, sem que nossos pais notassem, e fomos para sua casa. Cheio de entusiasmo a envolvi em meus braços e a beijei caricioso. Fomos para a cama. Eu a despi cuidadosamente sob uma colcha de retalhos. Trocamos afagos. Em seguida, afastou-se mais, olhando meu rosto. De repente, puxou a colcha e se enrolou.
- Não posso. Não estou preparada.
Seu jeitinho inocente era profundamente excitante. Da colcha enrolada ao seu corpo surdia a pele dourada dos ombros. Acariciei seus cabelos e seu rosto. Aproximei minha boca ao seu ouvido e murmurei:
- Quero ver teu corpo nu, correr minhas mãos sobre tua pele macia. Quero beijar teus seios, apertar tuas coxas...
Ela não cedeu. Pediu-me um tempo. Sem alternativa, consenti. Eu a amava e saberia esperar pelo momento em que ela se sentisse pronta. Juramos amor e prometemos conservar nossa virgindade. Teríamos a primeira noite de amor juntos. Voltamos para a festa, antes que dessem por nossa falta.

Minha obsessão fez com que brigássemos algumas vezes. Terminávamos num dia e voltávamos no outro. O vaivém durou mais de um ano, até que um dia Julia me procurou. Disse que não poderíamos seguir com nosso namoro. Surpreso, não compreendi. Ela se disse confusa, precisava de um tempo. Tentei conversar. Mas, embora meio embaraçada, parecia determinada. Chorei.

Dias a fio perguntei-me o porquê daquilo. Nós nos amávamos e tínhamos feito juras de amor. Sozinho no meu quarto, fantasiava nossa noite de amor. Conhecia cada curva do seu corpo. Sentia sua pele macia sobre a minha, seus lábios tocando os meus, sua língua quente e úmida a vasculhar-me a boca. Frustrado, adormecia. Amargas noites que não passaram de um insano delírio de sexo e paixão.

Resolvi procurá-la. Talvez tivesse sentido minha falta. Encontrei a casa fechada. O portão entreaberto permitiu minha entrada. A porta da cozinha estava apenas encostada. Empurrei-a, entrando devagar. Ninguém no quarto da mãe Julia. Continuei. Uma cortina amarela estampada com flores rosa e vermelha servia como porta no quarto de Julia. Passei minha cabeça pelo recorte da cortina a sua procura. Foi quando finalmente a encontrei. Desejei com todas as minhas forças nunca ter estado ali. Na cama um homem estava debruçado sobre Julia. Ela não me viu, estava com os olhos fechados. Estupefato, diante daquela visão ordinária, senti minha alma gritar. O homem me fitou com um olhar hostil. Sai correndo sem direção, chorando. Vagando pelas ruas, entristecido, fui tomado pelo ódio. Julia era agora desprezível. Como tinha sido hipócrita e dissimulada. Fingiu o tempo todo. Disse que me amava e agora estava se entregando a um homem que, pelo visto, tinha o dobro da sua idade. Era cruel demais para que eu pudesse aceitar.

Ao cair da noite, voltei para casa. Tranquei-me no meu quarto com a ilusão de que logo eu acordaria e tudo não teria passado de um pesadelo. Ouvi lá de cima, a campainha tocar. Era a mãe de Julia. Sempre visitava minha mãe. Era de praxe, embora naquele dia, já estivesse um pouco tarde. Nem pensei em descer para cumprimentá-la, pois não queria olhar para nada, nem ninguém. Permaneci no meu quarto. A visita foi rápida. Assim que ela saiu, minha mãe veio falar comigo. Sentou-se na minha cama e por alguns minutos apenas olhou-me com um olhar lânguido.
- Sei o quanto você e a Julia se gostam, filho – disse, com a voz rouca. É uma amizade muito bonita.
- Você está enganada mãe. A Julia não gosta de mim e eu tão pouco dela.
- Você precisa ser forte meu filho – Ela me abraçou e pois-se a chorar. - A Júlia se foi!
- A Júlia se mudou? Não estou entendendo mãe. Por que está chorando?
- Ela nos deixou querido – disse, tentando conter as lágrimas. - A Julia morreu, meu filho!
Um abismo se abriu sob meus pés. Aquilo já era demais.
- Isso não pode ser verdade mãe. Ainda há pouco eu a vi trans...
- Ela foi violentada hoje à tarde – disse, antes que eu pudesse concluir. - Foi cruelmente estuprada e assassinada, dentro de casa.
Disse isso e abraçou-me novamente. Depois pedi saísse. Precisava ficar sozinho. Era tudo inacreditável e a culpa era minha. Eu vi tudo. Poderia ter impedido, chamado a polícia, gritado por socorro. E, no entanto, não fiz nada para proteger a garota que eu amava. Preferi acusá-la, colocá-la no banco dos réus. Agora ela estava morta, e eu definharia o resto dos meus dias, corroído pelo remorso.

Na manhã seguinte, acordei bem cedo. Não queria ir ao enterro de Julia, mas alguma coisa me empurrava para lá. O dia estava cinzento e sem vida. Cheguei ao velório antes do horário marcado. Apenas a mãe de Julia estava lá. Cumprimentei-a com um beijo no rosto. Ela me abraçou com força e, em seguida, entregou-me um envelope:
- Acho que você deve ficar com isso – disse. - Encontrei nas coisas da Julia.
Era uma fotografia que havíamos tirado em frente ao parque da cidade. Era inverno, o dia estava lindo. Julia e eu passeávamos e comíamos pipoca. Uma bela lembrança. No verso algumas linhas diziam:

“A um único homem eu hei de me entregar loucamente
Com a pele viva, os lábios quentes e o corpo ardente.
Olhando-o nos olhos jurarei amor eternamente.”


Aproximei-me do caixão. As rosas brancas expressavam a pureza de uma menina doce e ingênua. Usava um vestido branco que eu nunca tinha visto. Ela era realmente linda, mesmo ali, sem vida. Reli o versinho dedicado a mim nas costas da fotografia. Olhei mais uma vez para o caixão. Seu corpo desvanecido estava exatamente como eu tinha visto no dia anterior. Então, naquele momento eu tive certeza. Ela já estava morta quando a vi na cama com aquele homem. Não havia nada que eu pudesse ter feito. Ele a matou antes de possuí-la. Suspirei num misto de dor e alívio. Senti meu corpo mais leve, sem o peso da culpa. Fui embora. Não queria permanecer diante daquele corpo frio. Julia não estava mais ali.

Caminhei até o parque. Tirei os sapatos e perambulei descalço pela grama. De repente, avistei Julia escondendo-se atrás de uma árvore. Corri para os seus braços. Ela ia de uma arvore à outra, como quem brinca de pique-esconde, chamando-me com a mão. Brincamos e corremos a tarde toda. E, todos os dias eu voltava para vê-la.

Assim passaram-se sessenta anos... e os meus amigos não tiveram uma história real.

quarta-feira, 17 de setembro de 2008

Olhos azuis


"O brilho dos teus olhos, de amor é fonte. Olhar que faz brilhar todo horizonte. Eternos, inspirados na pintura. Que Deus pintou, com gosto, nas alturas. Divinos, obra mor do Criador. Teus olhos, inspiração de um sonhador." - Manoel Virgílio


O doce de abóbora já estava quase no ponto e eu definitivamente não estava a fim de sair de casa naquele dia. Alfredo não parava de insistir. "O dia está lindo" dizia, eufórico, tentando me convencer. "Além do mais é sempre bom tomar um banho de mar, serve para tirar as energias negativas". Alfredo é assim, quando mete alguma coisa na cabeça ninguém mais tira. Disse também que um recente amigo seu iria conosco. Iríamos de carro. Na verdade não era bem um amigo, Alfredo havia conhecido o cara na internet, talvez já tivesse ido a sua casa, vez ou outra, à companhia de alguém, mas aquela tarde estava reservada para conhecê-lo melhor. Eu sabia de suas intenções para aquele dia, o que de fato, fez com que eu tivesse cada vez menos vontade de sair.

Ouvi a máquina de lavar concluindo seu trabalho. O doce ainda levaria alguns minutos para ficar pronto. Alfredo pois-se a me apressar dizendo que seu amigo já estava chegando. Disse que ele traria alguém legal para me apresentar. Não me animei. Logo o interfone tocou, eram os dois. Eu continuei na cozinha enquanto Alfredo foi até o portão do prédio. Depois de algum tempo Alfredo voltou com o mesmo discurso. Pediu insistentemente que eu fosse até a rua para conhecer seus amigos. Eu vestia apenas uma samba-canção, destas de seda, pensei em vestir um short e uma camiseta, mas como iria somente ao portão dei de ombros.

Já na calçada fui apresentado aos dois, Antonio e Xavier. Ambos de baixa estatura e com aproximadamente quarenta anos. Xavier tinha um olhar perdido. Mal notei a cor, tamanho, ou expressão de seus olhos, já Antonio era dono de fulminantes olhos azuis que eu tinha a impressão de estarem me atravessando a alma. Antonio e eu nos olhamos por segundos até que Alfredo quebrasse o silêncio. “Ele não que ir conosco porque está fazendo doce de abóbora”, disse com um tom debochado e um risinho chocho forçando o canto dos lábios. Sem tirar os olhos de mim Antonio insistiu para que eu fosse. “Ok! Vocês venceram. Aguardem um instante que eu já volto”. Atravessando a rua em direção ao prédio fiquei perguntando-me porque havia dito aquilo, afinal eu não queria ir. Olhei para trás e os olhos azuis ainda me fitavam.

Entrei apressado, desliguei o fogo sem verificar se o doce já estava no ponto. Vesti uma sunga qualquer e bati a porta às minhas costas me esquecendo de estender a roupa para secar. Sorri para Antonio pensando no que me fizera mudar de idéia tão de repente. Hesitei em pensar bobagens, até porque, para mim Antonio já estava “prometido” a Alfredo e eu deveria me aproximar de Xavier, que não havia me chamado à atenção. Alfredo e eu nos sentamos no banco de trás. Pelo retrovisor eu podia ver nitidamente o modo como Antonio encarava-me, tentei não corresponder, mas foi inevitável.

Só quando chegamos à praia notei que o dia estava realmente lindo como Alfredo havia dito. Nos posicionamos na areia próximo a um quiosque que o Antonio indicou e ficamos tomando sol. Alfredo puxou conversa tentando criar um clima amistoso entre todos. Falávamos sobre diversos assuntos sem muita objetividade. Ambos eram muito simpáticos. Xavier era mais falador, contudo não conseguia prender minha atenção, talvez também não fosse esta sua intenção. Conversamos sobre minha recente mudança para o Rio, sobre as diferenças de culturas e ritmos de vida de um lugar para outro. “Em São Paulo as pessoas tem um ritmo mais agitado, trabalham mais”, dizia eu tentando me gabar sem saber exatamente o que queria dizer. A conversa prosseguiu naturalmente durante toda a tarde e eu já não me incomodava mais com a insistência dos olhos azuis que, vez por outra, me fitavam como a procura de uma resposta.

Por volta das dezessete horas Antonio sugeriu que fossemos embora. Alfredo concordou imediatamente, eu disse que tudo bem e Xavier também não se opôs. Antonio se dirigiu ao quiosque para acertar a conta, quando voltou já estávamos nos preparando para sair. Alfredo foi à frente, seguido por Xavier, enquanto eu sacudia a canga para tirar a areia e Antonio fechava a cadeira de praia que ele mesmo levou. O pouquíssimo tempo que ficamos pra trás foi suficiente para Antonio, olhando fixamente nos meus olhos, pronunciar as seguintes palavras: “você é uma gracinha”. Eu não sabia o que dizer e agradeci o elogio apenas com um sorriso tímido. Seguimos. Em direção ao carro, estacionado a certa altura da Avenida Atlântica, Antonio nos disse que alguns amigos seus e do Xavier os esperavam num bar que ficava no caminho de volta. Gentilmente convidou-nos para acompanhá-los. Alfredo relutou, mas eu estava interessado no que poderia acontecer. Desta vez foi eu que insisti para que ele fosse. Dentro do carro a troca de olhares pelo retrovisor se repetiu de forma recíproca e com mais intensidade.

O Bar era pequeno, mas bem movimentado e a decoração lembrava um antigo cabaré. Ficava a poucos quilômetros de casa. Eua já tinha passado em frente, mas sem nunca ter entrado. Alguns rostos familiares circulavam por ali. Na mesa um irmão de Antonio e outros amigos nos receberam. Fomos apresentados, trocamos beijos, abraços e apertos de mãos. Todos se acomodaram. Para minha surpresa Alfredo deixou uma cadeira vazia ao lado de Antonio e fez um sinal para que eu me sentasse nela. Xavier encheu nossos copos com cerveja e Antonio propôs um brinde. “À noite, que está linda!” disse, olhando para mim. Todos na mesa eram muito agradáveis. Alfredo falava com o irmão de Antonio assuntos que chegavam aos meus ouvidos, mas não conseguiam desviar meus pensamentos. Meus olhos estavam fixos nos olhos de Antonio. Eu já podia sentir suas pernas roçarem as minhas sob a mesa. Meu desejo empurrava-me para aquela tentação, ao passo que, minha consciência relutava colocando Alfredo entre nós. Na praia os dois haviam conversado pouco. Antonio não deu muita atenção a Alfredo e ele também pareceu não se importar muito com isso. Perguntou-me o que eu havia achado de Antonio, eu disse apenas que era simpático.

Horas depois, Alfredo decidiu ir embora. Pedi para que ficasse, mas não adiantou, desta vez não insisti. Pensei em ir também, mas não consegui, minhas mãos já tocavam as mãos de Antonio sobre nossas pernas. Despedi-me de Alfredo com um aperto de mãos e um tapinha nas costas e ele sumiu dobrando a esquina. Meu olhar se voltou para a mesa a procura dos olhos azuis, mas eles não estavam mais lá. Alguém na mesa informou-me que ele tinha ido ao banheiro. Pensei em ir até lá mas logo desisti, não achei conveniente. Acendi um cigarro e resolvi esperar por ele ali mesmo enquanto participava de um interminável monólogo produzido por uma de suas amigas.

Quando ele voltou sentou-se à mesa, ascendeu um cigarro e enquanto liberava a fumaça de seus pulmões perguntou-me com um olhar malicioso se eu gostaria de ir embora. Desviando-me do monólogo respondi que sim. Rapidamente nos despedimos do pessoal e em poucos minutos já estávamos no carro, desta vez só ele e eu. As portas bateram juntas, nossos olhos se encontraram segundos antes de nossos lábios. Não sei explicar o que senti durante aquele beijo, nem quanto tempo ele durou. Sei que foi molhado e que por algum motivo eu não conseguiria esquecê-lo. Sem dizer nada, mas já sabendo o que estava por vir, seguimos para o seu apartamento.

Morávamos na mesma rua, aproximadamente uns dez prédios separavam os nossos. Ele parou o carro na calçada em frente ao seu apartamento e verificou algo antes de subirmos. O apartamento era muito acolhedor, bem agradável, precisava só de alguns toques na decoração e, de repente, uma nova mão de tinta. Conduziu-me direto para o seu quarto sem muitas palavras. Estava aparentemente ansioso. Eu também estava, porém um pouco mais calmo. Já deitados e completamente despidos eu podia sentir sua língua percorrendo meu pescoço como se procurasse algo. Nossas mãos deslizavam mutuamente sobre nossos corpos como as de um cego a contemplar uma obra de arte. Respirávamos ofegantes e nos apertávamos um contra o outro como se quiséssemos, numa espécie de mutação, sermos um só. Nossas partes íntimas ainda preservavam a areia da praia. Não demoramos muito a soltar um uivo e cair na cama entregues a exaustão, parecíamos ter entrado num estado de transe. Minutos depois, quando retomei a consciência, fui surpreendido por serenos olhos azuis, cheios de ternura a me observarem. A inquietação havia passado e tudo que restara era paz e tranqüilidade. Abri um pequeno sorriso sem mostrar os dentes e perguntei-me em silencio: “como seria não ter Antonio por perto?”


Felizmente eu nunca soube a resposta. Desde então sou surpreendido todas as manhãs pelos mesmos olhos azuis que me atravessaram a alma naquele domingo de sol, quando minha única certeza era um saboroso doce de abóbora.
"Há um tempo em que é preciso abandonar as roupas usadas, que já tem a forma do nosso corpo, e esquecer os nossos caminhos, que nos levam sempre aos mesmos lugares. É o tempo da travessia. E, se não ousarmos fazê-la, teremos ficado, para sempre, à margem de nós mesmos." - Fernando Pessoa