quinta-feira, 30 de abril de 2009

Amarga Coincidência

"Somos homens pra saber o que é melhor pra nós. O desejo a nos punir, só porque somos iguais. A Idade Média é aqui. Mesmo que me arranquem o sexo, minha honra, meu prazer: Te amar eu ousaria. E você, o que fará se esse orgulho nos perder?..." - Jorge Vercillo - Avesso


As lágrimas despencavam-lhe violentamente dos olhos. Tomou o filho nos braços e partiu depressa rumo ao hospital. Enquanto aguardava na sala de espera, dois policiais aproximaram-se para lhe interrogar:
- Conte-nos como foi que encontrou seu filho.
- Ele estava caído, coberto de sangue, com marcas por todo o corpo – disse atordoado.
- Estava acordado?
O pai hesitou por um instante. Enfim concluiu:
- Não sei. Fiquei desesperado quando o vi ali, caído – disse com voz tremula, pondo-se a chorar compulsivamente.
Os policiais consideraram oportuno interromper o interrogatório enquanto aguardavam o laudo médico.
...

Era a primeira manhã de sol depois de um longo inverno frio e chuvoso. Os pássaros catarolavam, festejando a entrada da nova estação. Lucas acordou antes de soar o despertador previsto para as oito horas. Quase não pregara os olhos àquela noite de tanta ansiedade. Levantou-se depressa. Ia e vinha de um lado a outro sem saber o que fazer primeiro. Diante do espelho, após pentear os cachos dourados, tentava inutilmente esconder as olheiras que a noite mal dormida lhe trouxera esticando a pele sob os delicados olhos azuis. Finalmente vestiu-se depois de provar todas as roupas do armário. Deslizou pelo corrimão, parando com um salto no centro da sala de estar. Cumprimentou a mãe ao passar pela cozinha e saiu sem desjejuar. Lucas estava radiante. Passaria o dia todo com seu melhor amigo Alex que retornara de viagem naquela semana. O amigo se ausentou porque seus pais decidiram que deveria estudar alemão. Passado um ano na Alemanha o garoto que já falava inglês e espanhol voltou com o novo idioma na ponta da língua. Alex tinha facilidade com os idiomas, aprendia com rapidez e falava como um estrangeiro nato. Era dois anos mais velho que Lucas, corpulento e safo. Sua barba sempre por fazer denotava-lhe uma aparência mais velha, ao passo que, Lucas com dezessete anos ainda parecia uma criança. Apesar do corpo esguio e das curvas bem definidas seu rosto meigo era de bebe.

Encontraram-se numa estrada de terra que levava a um pequeno povoado vizinho. Caminharam cerca de duas horas falando sobre a viagem de Alex e as novidades em Miguel Pereira cidade natal de ambos, onde viviam. Pegaram uma trilha e em menos de uma hora chegaram a um riacho formado por uma pequena queda d’água que jorrava a pouco mais de um metro de altura. Despiram-se, contemplando a beleza e num salto mergulharam. Do alto de uma árvore alguém os observava, nadando como vieram ao mundo. Alex nadava como um peixe. Lucas tentava imitá-lo sem muito sucesso.
- Estamos nadando há bastante tempo. Estou com fome.
- Vamos fazer uma pausa para comer algo – sugeriu Alex.
Saíram da água e caminharam até seus pertences. Alex retirou uma tolha da mochila e a estendeu no chão. Pegou dois sanduíches de queijo, algumas frutas e um refrigerante e dividiu com o Amigo.
- Você ainda não me disse nada em alemão.
- Qualquer dia eu digo alguma coisa.
- Diga-me agora, qualquer coisa – insistiu Lucas.
- Ich liebe dich – disse Alex, pela primeira vez demonstrando timidez.
- O que isso quer dizer?
- Descubra! – disse Alex, terminando de comer e voltando ao lago para fugir do assunto que lhe enrubescera a face.
Nadaram por mais algum tempo até que a noite começou a cair. Antes de escurecer por completo vestiram suas roupas e voltaram para a cidade.
...

No hospital nenhuma novidade. O homem, indócil, aguardava notícias do filho que permanecia na sala de emergência com olhos arregalados, cheios de ódio e medo, da mesma forma que chegou ao hospital, sem dizer uma única palavra.
...

No caminho de volta Alex desviou-se da direção, entrando numa pequena rua deserta que desembocava num velho galpão. Lucas seguiu-o distraído. Alex entrou nas ruínas, puxando Lucas pelo braço que não teve tempo de reagir.
- O que fazemos aqui? – indagou surpreso.
Alex empurrou o amigo contra a parede e o beijou num impulso. Lucas nunca havia sido beijado por um homem. Quis empurrar o amigo e acabar com aquilo, mas sentiu uma estranha vontade de prosseguir. Perplexo retribuiu o beijo desconcertado.

Ao sair do trabalho Otávio entrou no carro e seguiu direto para casa. Apressado resolveu cortar caminho por uma pequena rua deserta onde teve a infelicidade de ter um de seus pneus furado. Sem ferramentas, encostou o carro em frente a um galpão abandonado e entrou a procura de alguém que pudesse lhe emprestar um macaco e uma chave de roda. Da porta pode observar duas pessoas namorando no galpão. Aproximou-se cauteloso e viu dois rapazes que se beijavam distraídos. Escondeu-se atrás de alguns pneus, espreitando os dois.

Lucas afastou o amigo segurando-lhe pelos braços.
- O que está fazendo? - perguntou confuso.
- Desculpe-me. Não sei o que deu em mim – Alex tentava explicar-se, envergonhado.
Um silêncio absoluto tomou conta do galpão. Num ímpeto, ainda com as mãos nos braços de Alex, Lucas o puxou de volta e o beijou voraz. Um sentimento inexplicável tomava conta dos dois que se deliciavam, um nos braços do outro. Escondido Otávio estranhamente excitava-se ao mesmo tempo em que sentia ódio e nojo dos garotos. Otávio sempre foi um homem muito preconceituoso e machista. Prestava uma educação severa ao único filho que sua esposa lhe dera. Sua vontade era de espancar os garotos, mas permaneceu imóvel. Alex virou o amigo abraçando-o por trás e beijando-lhe a nuca e as orelhas enquanto esfregava o membro rígido em suas nádegas.
...

Depois de intermináveis horas de espera o médico saiu da sala e foi ao encontro do pai que aguardava, aflito, notícias de Lucas.
- Seu filho está bem – anunciou o médico diligente – ele sofreu graves lesões, mas irá se recuperar.
- Quanto tempo ele ainda terá que ficar aqui doutor?
- Ainda não sabemos ao certo. O suficiente para uma boa recuperação. É só o que posso dizer por enquanto – disse o médico, fazendo sinal para que os policiais o acompanhassem.
Sozinho com os policiais declarou:
- São evidentes os sinais de estupro – fez uma pausa enquanto os policiais apenas o observavam. - Há marcas de pancada e ferimentos por todo o corpo.
...

No galpão os meninos finalmente se deram conta do tempo que haviam passado ali.
- Está ficando tarde – disse Lucas virando-se de repente e interrompendo o amigo que estava preste a descer-lhe as calças – receio que meus pais estejam preocupados.
- Sim, claro. Vamos embora!
Despediram-se com um beijo demorado e Alex deixou o galpão contrariado com a decisão do amigo de permacer alí, sozinho.
- Preciso ficar um pouco e pensar no que aconteceu – determinou Lucas. - Além do mais estamos perto de casa, daqui sigo sozinho, não se preocupe.
- Certo, mas não demore, este lugar não é confiável - disse Alex ao se retirar.
Otávio encolheu-se mais fazendo com que Alex saísse sem notá-lo. Depois caminhou silenciosamente em direção a Lucas e com um soco jogou-lhe ao chão, agaixando-se sobre ele.
- É disso que você gosta seu pederasta nojento? – disse exacerbado, arriando as calças do rapaz.
Lucas gritou por socorro algumas vezes, mas logo levou uma pancada na cabeça e perdeu as forças. Com as calças também arriadas Otávio deitou sobre ele, penetrando-o violentamente repetidas vezes à medida que o espancava com uma das mãos e com a outra agarrada às suas madeixas esfregava sua cara no chão. A única luz no galpão vinha de uma falha no telhado provocada por uma telha quebrada. Mesmo com pouca claridade Lucas pode facilmente reconhecer seu algoz.
...

O médico tentava extrair alguma informação do garoto que permanecia calado e atônito. Em outra sala os policiais interrogavam o pai:
- Conte-nos com detalhes senhor, como foi que tudo se passou?
- Eu estava saindo do trabalho – disse temeroso. – E, resolvi pegar atalho por uma rua deserta, onde tive a infelicidade de ter um dos pneus furado por um prego. Então parei próximo a um galpão e resolvi entrar para ver se conseguia ferramentas emprestadas – fez uma pausa e continuou – quando entrei encontrei meu filho neste estado.
- Acho que isso é suficiente por enquanto senhor. Tente se acalmar. Tudo acabará bem. Precisamos do seu nome completo e o número de um documento para o boletim de ocorrência – continuou o policial.
- Otávio Martins Leite – disse o homem, vasculhando a carteira à procura de um documento.
- Perfeito senhor, isso é tudo. Acho que já pode ver o seu filho – concluiu o policial dando a conversa por encerrada.
Otávio entrou na sala onde Lucas se encontrava deitado à companhia do médico. O garoto dirigiu um olhar apavorado ao pai que se pôs a chorar imediatamente.
- Vou deixá-los a sós para que possam conversar – disse o médico, deixando o quarto para desespero do rapaz.
- Meu Deus, o que eu fiz? – questionava-se o pai incrédulo, tentando conter as lágrimas. - Perdoe-me meu filho – emendou.
O garoto permanecia calado, agora chorando baixinho. Seus olhos injetados pelo sofrimento e pelo medo permaneciam estáticos.
O pai teve que deixar o quarto a contragosto. Enfermeiros entravam com um senhor de idade avançada que dividiria o quarto com o garoto. Passado algum tempo percebendo o sotaque diferente com que o velho se dirigia aos enfermeiros o garoto quebrou o silencio:
- O senhor fala engraçado – disse, um tanto rouco, depois de tantas horas calado.
- Ainda não aprendi direito o idioma de vocês – retrucou o velho.
- De onde o senhor é?
- Sou da Alemanha, mas venho ao Brasil ocasionalmete visitar um de meus filhos.
Lucas sentiu segurança nas palavras do velho, dócil emendou um falatório sem fim. Os dois conversaram por horas até que foram interrompidos pelo médico surpreso ao ver o garoto falando. O pai, na sala de espera, aguardava ser chamado novamente.

Mais tarde o médico decidiu por chamar Alex já que Lucas não falava em outra coisa desde que o doutor o surpreendera tagarelando. O velho alemão apenas observava. Em poucas horas Alex adentrou ao hospital esbaforido. Conduziaram-no até o quarto de Lucas, passando pelo pai que aguardava aflito. Otávio não reconheceu o rapaz que passou despercebido por ele. Ao entrar no quarto avistou Lucas que o recebeu jubiloso. Alex não conseguia acreditar no que via. O menino envergonhando, aos poucos foi contando tudo ao amigo furtando alguns detalhes. Pasmo Alex encorajava-o a dizer tudo ao médico. Lucas olhou para o lado e ganhou o olhar de aprovação do velho que ouvira tudo em silêncio. Depois de ouvir tudo o médico se dirigiu aos policiais que, já desconfiados, foram até a sala de espera e deram voz de prisão a Otávio antes mesmo do resultado dos exames feito com o sêmen encontrado no garoto. No quarto Lucas não conseguia controlar o choro. Delicadamente Alex sentou-se na cama, colocando a cabeça do amigo em seu colo. Tomado pelo cansaço Lucas reuniu forças, fitou o parceiro e disse:

- Ich liebe dich auch!

Olhou para o velho, deu uma piscadela e adormeceu nos braços de seu amado.

2 comentários:

Lid disse...

que historia interessante!!

adorei!

Morgana disse...

Nossa..Gostei muito!!!

"Há um tempo em que é preciso abandonar as roupas usadas, que já tem a forma do nosso corpo, e esquecer os nossos caminhos, que nos levam sempre aos mesmos lugares. É o tempo da travessia. E, se não ousarmos fazê-la, teremos ficado, para sempre, à margem de nós mesmos." - Fernando Pessoa