sábado, 2 de maio de 2009

Transporte Urbano


Saio do trabalho as 22:40, desço as escadas rolantes, atravesso a porta de saída do Shopping Leblon, ascendo um cigarro e rumo para a Avenida Afrânio de Melo Franco, onde habitualmente pego o ônibus, que me deixa perto de casa.
Após dez ou quinze minutos de espera, o que eu considero uma infinidade de tempo, eis que surge o vermelhinho 433. Com o braço ereto e apenas o polegar esticado, apontando para o outro lado da rua, faço sinal para o motorista. Ele sabidamente compreende meu sinal e para o ônibus, abrindo as portas para que eu entre. Dentro do veículo, após transpor a roleta, escolho um banco para me sentar. São inúmeras as opções, já que não há ninguém no ônibus além do motorista, o cobrador e um ou outro coitado que também utiliza o transporte público a essa hora. Depois de sentar-me abro meu livro e entrego-me a leitura. Há uma grande vantagem em se ir para o trabalho de ônibus, coisa que o carro não pode proporcionar. Depois de acomodado você pode utilizar o tempo da viagem, que no meu caso é de trinta minutos, podendo chegar à uma hora, dependendo do transito e da boa vontade do motorista, para ler ou tirar um cochilo. Isso quando o motorista não resolve tirar o pai da forca ameaçando tombar o ônibus em curvas sinuosas que quase nos arremessam para fora do veículo. E, quando o ônibus finalmente chega onde você deseja, ao contrário do carro, você apenas desce e dane-se o ônibus, não é preciso enfurecer-se enquanto procura ansiosamente por uma bendita vaga. Sim, porque se eu ousar guardar o carro no estacionamento do shopping terei de vendê-lo na saída para pagar a diária.

Foco.
Enquanto lia, absorto, o livro “Coração de Tulipa” do escritor André Neuding Filho, (na ocasião em que escrevo já concluí a leitura e recomendo) um indivíduo passou por mim, sentando-se no fundo do ônibus. Minutos depois o desgraçado volta e com a mão por baixo da blusa, apontando-me algo que segundo ele seria um revolver. Pediu grosseiramente que eu me levantasse e o acompanhasse até os fundos. Acho que se os assaltantes fossem um pouco mais educados aliviariam um pouco a tensão do assalto. Olhei desesperadamente para frente à procura de socorro. O cobrador, virado para frente do ônibus, distraía-se com fones no ouvido, um dos únicos dois passageiros à minha frente dormia e a outra lia algo que deveria ser uma revista ou um jornal. Pensei em quantas pessoas poderiam estar sendo assaltadas naquele momento enquanto outras ouviam seus rádios de pilha ou liam seus livros, alheios à realidade como eu fazia há pouco. Com medo, fiz o que o sujeito me pedia. Sozinhos lá no fundo, o infeliz forçava o cano contra minha barriga. Exigiu minha carteira mesmo depois de eu ter dito repetidas vezes que não havia dinheiro e, de fato, não havia mesmo. Quando abriu encontrou dois dólares e dois reais. Acho que ele se compadeceu de mim, pois atirou a carteira sobre meu colo sem retirar os trocados. Notando a saliência no meu bolso esquerdo exigiu o que adivinhou ser um celular. Depois de apossar-se do aparelho ordenou que eu fosse para frente. Desolado obedeci tremendo feito uma vara verde.
Passados alguns minutos o sujeito desceu do ônibus quando uma multidão de jovens entrou com destino a Lapa. Finalmente senti-me aliviado, embora, frustrado. Após vencer um interminável congestionamento ao passar pela movimentada Lapa desci do ônibus e caminhei até minha casa, onde tive a surpresa de encontrar meu namorado na porta com o celular (dele) na mão, dizendo que alguém ligava do meu número. Não pude deixar de notar o olhar despontado que ele me lançou crédulo de que eu havia feito alguma "M". Do outro lado da linha um sujeito com voz branda dizia que havia encontrado meu celular e que se eu quisesse de volta poderia buscá-lo na Tijuca. Que tipo de pessoa acha que eu me despencaria de Santa Teresa àquela hora e iria até a Tijuca encontrar um desconhecido para obter de volta um celular que me fora roubado minutos antes??? Affff....Marquei um encontro com o sujeitinho em Copacabana no dia seguinte. Você foi? Nem eu! Liguei na operadora e segui os procedimentos de praxe para quem tem o aparelho perdido ou roubado, embora, no fundo, eu acredite que isso seja apenas para descargo de consciência. A atendente, depois de solicitar um número que se encontra na NF do aparelho, orientou-me no sentido de que o aparelho seria bloqueado não podendo ser utilizado de forma alguma, nem com um chip de outra operadora. Duvido. Ainda que isso seja verdade, o aparelho ainda servirá como despertador, agenda telefônica, agenda de compromissos, conversor de moedas, calculadora, MP3, Câmera fotográfica e outras funções que talvez eu ignore. É... Mais uma vez é a tecnologia a serviço do povo!!!

quinta-feira, 30 de abril de 2009

Amarga Coincidência

"Somos homens pra saber o que é melhor pra nós. O desejo a nos punir, só porque somos iguais. A Idade Média é aqui. Mesmo que me arranquem o sexo, minha honra, meu prazer: Te amar eu ousaria. E você, o que fará se esse orgulho nos perder?..." - Jorge Vercillo - Avesso


As lágrimas despencavam-lhe violentamente dos olhos. Tomou o filho nos braços e partiu depressa rumo ao hospital. Enquanto aguardava na sala de espera, dois policiais aproximaram-se para lhe interrogar:
- Conte-nos como foi que encontrou seu filho.
- Ele estava caído, coberto de sangue, com marcas por todo o corpo – disse atordoado.
- Estava acordado?
O pai hesitou por um instante. Enfim concluiu:
- Não sei. Fiquei desesperado quando o vi ali, caído – disse com voz tremula, pondo-se a chorar compulsivamente.
Os policiais consideraram oportuno interromper o interrogatório enquanto aguardavam o laudo médico.
...

Era a primeira manhã de sol depois de um longo inverno frio e chuvoso. Os pássaros catarolavam, festejando a entrada da nova estação. Lucas acordou antes de soar o despertador previsto para as oito horas. Quase não pregara os olhos àquela noite de tanta ansiedade. Levantou-se depressa. Ia e vinha de um lado a outro sem saber o que fazer primeiro. Diante do espelho, após pentear os cachos dourados, tentava inutilmente esconder as olheiras que a noite mal dormida lhe trouxera esticando a pele sob os delicados olhos azuis. Finalmente vestiu-se depois de provar todas as roupas do armário. Deslizou pelo corrimão, parando com um salto no centro da sala de estar. Cumprimentou a mãe ao passar pela cozinha e saiu sem desjejuar. Lucas estava radiante. Passaria o dia todo com seu melhor amigo Alex que retornara de viagem naquela semana. O amigo se ausentou porque seus pais decidiram que deveria estudar alemão. Passado um ano na Alemanha o garoto que já falava inglês e espanhol voltou com o novo idioma na ponta da língua. Alex tinha facilidade com os idiomas, aprendia com rapidez e falava como um estrangeiro nato. Era dois anos mais velho que Lucas, corpulento e safo. Sua barba sempre por fazer denotava-lhe uma aparência mais velha, ao passo que, Lucas com dezessete anos ainda parecia uma criança. Apesar do corpo esguio e das curvas bem definidas seu rosto meigo era de bebe.

Encontraram-se numa estrada de terra que levava a um pequeno povoado vizinho. Caminharam cerca de duas horas falando sobre a viagem de Alex e as novidades em Miguel Pereira cidade natal de ambos, onde viviam. Pegaram uma trilha e em menos de uma hora chegaram a um riacho formado por uma pequena queda d’água que jorrava a pouco mais de um metro de altura. Despiram-se, contemplando a beleza e num salto mergulharam. Do alto de uma árvore alguém os observava, nadando como vieram ao mundo. Alex nadava como um peixe. Lucas tentava imitá-lo sem muito sucesso.
- Estamos nadando há bastante tempo. Estou com fome.
- Vamos fazer uma pausa para comer algo – sugeriu Alex.
Saíram da água e caminharam até seus pertences. Alex retirou uma tolha da mochila e a estendeu no chão. Pegou dois sanduíches de queijo, algumas frutas e um refrigerante e dividiu com o Amigo.
- Você ainda não me disse nada em alemão.
- Qualquer dia eu digo alguma coisa.
- Diga-me agora, qualquer coisa – insistiu Lucas.
- Ich liebe dich – disse Alex, pela primeira vez demonstrando timidez.
- O que isso quer dizer?
- Descubra! – disse Alex, terminando de comer e voltando ao lago para fugir do assunto que lhe enrubescera a face.
Nadaram por mais algum tempo até que a noite começou a cair. Antes de escurecer por completo vestiram suas roupas e voltaram para a cidade.
...

No hospital nenhuma novidade. O homem, indócil, aguardava notícias do filho que permanecia na sala de emergência com olhos arregalados, cheios de ódio e medo, da mesma forma que chegou ao hospital, sem dizer uma única palavra.
...

No caminho de volta Alex desviou-se da direção, entrando numa pequena rua deserta que desembocava num velho galpão. Lucas seguiu-o distraído. Alex entrou nas ruínas, puxando Lucas pelo braço que não teve tempo de reagir.
- O que fazemos aqui? – indagou surpreso.
Alex empurrou o amigo contra a parede e o beijou num impulso. Lucas nunca havia sido beijado por um homem. Quis empurrar o amigo e acabar com aquilo, mas sentiu uma estranha vontade de prosseguir. Perplexo retribuiu o beijo desconcertado.

Ao sair do trabalho Otávio entrou no carro e seguiu direto para casa. Apressado resolveu cortar caminho por uma pequena rua deserta onde teve a infelicidade de ter um de seus pneus furado. Sem ferramentas, encostou o carro em frente a um galpão abandonado e entrou a procura de alguém que pudesse lhe emprestar um macaco e uma chave de roda. Da porta pode observar duas pessoas namorando no galpão. Aproximou-se cauteloso e viu dois rapazes que se beijavam distraídos. Escondeu-se atrás de alguns pneus, espreitando os dois.

Lucas afastou o amigo segurando-lhe pelos braços.
- O que está fazendo? - perguntou confuso.
- Desculpe-me. Não sei o que deu em mim – Alex tentava explicar-se, envergonhado.
Um silêncio absoluto tomou conta do galpão. Num ímpeto, ainda com as mãos nos braços de Alex, Lucas o puxou de volta e o beijou voraz. Um sentimento inexplicável tomava conta dos dois que se deliciavam, um nos braços do outro. Escondido Otávio estranhamente excitava-se ao mesmo tempo em que sentia ódio e nojo dos garotos. Otávio sempre foi um homem muito preconceituoso e machista. Prestava uma educação severa ao único filho que sua esposa lhe dera. Sua vontade era de espancar os garotos, mas permaneceu imóvel. Alex virou o amigo abraçando-o por trás e beijando-lhe a nuca e as orelhas enquanto esfregava o membro rígido em suas nádegas.
...

Depois de intermináveis horas de espera o médico saiu da sala e foi ao encontro do pai que aguardava, aflito, notícias de Lucas.
- Seu filho está bem – anunciou o médico diligente – ele sofreu graves lesões, mas irá se recuperar.
- Quanto tempo ele ainda terá que ficar aqui doutor?
- Ainda não sabemos ao certo. O suficiente para uma boa recuperação. É só o que posso dizer por enquanto – disse o médico, fazendo sinal para que os policiais o acompanhassem.
Sozinho com os policiais declarou:
- São evidentes os sinais de estupro – fez uma pausa enquanto os policiais apenas o observavam. - Há marcas de pancada e ferimentos por todo o corpo.
...

No galpão os meninos finalmente se deram conta do tempo que haviam passado ali.
- Está ficando tarde – disse Lucas virando-se de repente e interrompendo o amigo que estava preste a descer-lhe as calças – receio que meus pais estejam preocupados.
- Sim, claro. Vamos embora!
Despediram-se com um beijo demorado e Alex deixou o galpão contrariado com a decisão do amigo de permacer alí, sozinho.
- Preciso ficar um pouco e pensar no que aconteceu – determinou Lucas. - Além do mais estamos perto de casa, daqui sigo sozinho, não se preocupe.
- Certo, mas não demore, este lugar não é confiável - disse Alex ao se retirar.
Otávio encolheu-se mais fazendo com que Alex saísse sem notá-lo. Depois caminhou silenciosamente em direção a Lucas e com um soco jogou-lhe ao chão, agaixando-se sobre ele.
- É disso que você gosta seu pederasta nojento? – disse exacerbado, arriando as calças do rapaz.
Lucas gritou por socorro algumas vezes, mas logo levou uma pancada na cabeça e perdeu as forças. Com as calças também arriadas Otávio deitou sobre ele, penetrando-o violentamente repetidas vezes à medida que o espancava com uma das mãos e com a outra agarrada às suas madeixas esfregava sua cara no chão. A única luz no galpão vinha de uma falha no telhado provocada por uma telha quebrada. Mesmo com pouca claridade Lucas pode facilmente reconhecer seu algoz.
...

O médico tentava extrair alguma informação do garoto que permanecia calado e atônito. Em outra sala os policiais interrogavam o pai:
- Conte-nos com detalhes senhor, como foi que tudo se passou?
- Eu estava saindo do trabalho – disse temeroso. – E, resolvi pegar atalho por uma rua deserta, onde tive a infelicidade de ter um dos pneus furado por um prego. Então parei próximo a um galpão e resolvi entrar para ver se conseguia ferramentas emprestadas – fez uma pausa e continuou – quando entrei encontrei meu filho neste estado.
- Acho que isso é suficiente por enquanto senhor. Tente se acalmar. Tudo acabará bem. Precisamos do seu nome completo e o número de um documento para o boletim de ocorrência – continuou o policial.
- Otávio Martins Leite – disse o homem, vasculhando a carteira à procura de um documento.
- Perfeito senhor, isso é tudo. Acho que já pode ver o seu filho – concluiu o policial dando a conversa por encerrada.
Otávio entrou na sala onde Lucas se encontrava deitado à companhia do médico. O garoto dirigiu um olhar apavorado ao pai que se pôs a chorar imediatamente.
- Vou deixá-los a sós para que possam conversar – disse o médico, deixando o quarto para desespero do rapaz.
- Meu Deus, o que eu fiz? – questionava-se o pai incrédulo, tentando conter as lágrimas. - Perdoe-me meu filho – emendou.
O garoto permanecia calado, agora chorando baixinho. Seus olhos injetados pelo sofrimento e pelo medo permaneciam estáticos.
O pai teve que deixar o quarto a contragosto. Enfermeiros entravam com um senhor de idade avançada que dividiria o quarto com o garoto. Passado algum tempo percebendo o sotaque diferente com que o velho se dirigia aos enfermeiros o garoto quebrou o silencio:
- O senhor fala engraçado – disse, um tanto rouco, depois de tantas horas calado.
- Ainda não aprendi direito o idioma de vocês – retrucou o velho.
- De onde o senhor é?
- Sou da Alemanha, mas venho ao Brasil ocasionalmete visitar um de meus filhos.
Lucas sentiu segurança nas palavras do velho, dócil emendou um falatório sem fim. Os dois conversaram por horas até que foram interrompidos pelo médico surpreso ao ver o garoto falando. O pai, na sala de espera, aguardava ser chamado novamente.

Mais tarde o médico decidiu por chamar Alex já que Lucas não falava em outra coisa desde que o doutor o surpreendera tagarelando. O velho alemão apenas observava. Em poucas horas Alex adentrou ao hospital esbaforido. Conduziaram-no até o quarto de Lucas, passando pelo pai que aguardava aflito. Otávio não reconheceu o rapaz que passou despercebido por ele. Ao entrar no quarto avistou Lucas que o recebeu jubiloso. Alex não conseguia acreditar no que via. O menino envergonhando, aos poucos foi contando tudo ao amigo furtando alguns detalhes. Pasmo Alex encorajava-o a dizer tudo ao médico. Lucas olhou para o lado e ganhou o olhar de aprovação do velho que ouvira tudo em silêncio. Depois de ouvir tudo o médico se dirigiu aos policiais que, já desconfiados, foram até a sala de espera e deram voz de prisão a Otávio antes mesmo do resultado dos exames feito com o sêmen encontrado no garoto. No quarto Lucas não conseguia controlar o choro. Delicadamente Alex sentou-se na cama, colocando a cabeça do amigo em seu colo. Tomado pelo cansaço Lucas reuniu forças, fitou o parceiro e disse:

- Ich liebe dich auch!

Olhou para o velho, deu uma piscadela e adormeceu nos braços de seu amado.
"Há um tempo em que é preciso abandonar as roupas usadas, que já tem a forma do nosso corpo, e esquecer os nossos caminhos, que nos levam sempre aos mesmos lugares. É o tempo da travessia. E, se não ousarmos fazê-la, teremos ficado, para sempre, à margem de nós mesmos." - Fernando Pessoa